16/01/09

Texto nº 24 ( Jornal "BADALADAS", 16 / 01 / 2009 )

História e Literatura de Ficção

As Aventuras de Richard Sharpe, um herói no tempo das Guerras Napoleónicas



Manuela Catarino *

Quando se percorrem as páginas de suplementos literários ou se espreitam os escaparates das livrarias confronta-se o passante e possível leitor com a possibilidade de realizar diversas viagens entre tempos, espaços e vivências muito diferentes, através de uma intriga sedutora, movimentada, recheada de personagens entre o real e o imaginário. Capas apelativas, títulos engenhosos, dão forma a um género literário que, nos dias de hoje, ganhou novo fôlego: o romance histórico.
Herdeiro dos tão apreciados “contadores de estórias” que tanto marcaram a tradição oral, o romance histórico ganha mais intensidade quando se fixa no suporte papel e nas páginas que enforma. Os heróis, as paisagens, os costumes, as marcas de um quotidiano diferente são pretextos para incursões em temáticas que podem ir da política à arte, da religião à guerra, da mentalidade à música, mas deixando sempre ao leitor a perspectiva de , se o desejar, retomar a dimensão “real” dos factos que “reconstitui”.
Cabem nesta acepção os volumes que a Planeta Editora tem vindo a publicar sob o título As Aventuras de Richard Sharpe da autoria do escritor de origem britânica Bernard Cornwell, cujo cenário se desenrola nos campos de batalha peninsulares do século XIX. Neles encontramos os momentos decisivos das lutas entre as forças napoleónicas e a resistência organizada nos reinos de Portugal e Espanha, desde a Galiza a Talavera, da destruição de Almeida à batalha do Buçaco, para apenas referirmos alguns exemplos.
Não será difícil acompanhar as peripécias do tenente Sharpe e dos seus companheiros de luta em cada página que o autor tão vivamente nos apresenta. Emboscamo-nos, subimos os íngremes penhascos, acompanhamos o movimento das forças adversárias, atentos ao mínimo pormenor. Assistimos ao desespero das populações civis na iminência da destruição das suas casas, dos parcos bens que possuem, da perda da própria vida.
Mas também participamos de momentos ironicamente perfeitos como aquele que a imaginação do autor nos propicia no episódio que situa em 1809, no salão de recepções da ala oeste do Palácio das Carrancas, junto ao Douro, enquanto as forças de Sir Arthur Wellesley instaladas nas ruas de Vila Nova de Gaia disparavam os canhões por sobre o rio e os franceses se acantonavam na cidade do Porto – […] Um francês alentado, com um bigode enorme, entrara na sala. Trazia um avental manchado de sangue, com uma medonha faca de trinchar á cintura.
-Mandou-me chamar, meu Marechal? – disse ele, soando a contrariado.
- Mandei, pois.- Soult empurrou a cadeira para trás, esfregando as mãos. –Temos de pensar no jantar, sargento Deron! Vou ter dezasseis talheres e quero saber o que é que sugere?
- Eu tenho enguias.
- Enguias! – exclamou Soult, todo contente. – Recheadas com pescada em molho de manteiga e cogumelos ?Excelente.
- Eu vou cortá-las em filetes - disse, casmurro, o sargento Deron -, fritá-las em salsa e servi-las com um molho de vinho tinto. E, para entrada, tenho borrego, um borrego muito bom.
- Muito bem! Eu gosto de borrego – disse Soult. – Não pode fazer um molho de alcaparras?
- Um molho de alcaparras? – Deron parecia desolado. – O vinagre ia afogar o borrego – disse ele, indignado – e, trata-se de borrego muito bom, tenro e gordo.
- Podia ser um molho de alcaparras muito leve, talvez? – sugeriu Soult.
O som das armas aumentou para uma fúria repentina, fazendo estremecer as janelas e entrechocarem-se os pingentes de cristal dos dois candelabros suspensos sobre a comprida mesa, mas tanto o marechal como o cozinheiro ignoraram o barulho.
- O que eu posso fazer – disse Deron, num tom que sugeria que a discussão terminava ali – é cozinhar o borrego em gordura de pato.
-Muito bem! – disse Soult.
-E guarnecê-lo com cebolinhas, presunto e uns cogumelos.
Um oficial com um ar exausto, a suar, a cara vermelha do calor do dia, entrou na sala.
-Meu Marechal!
- Um momento – disse Soult, franzindo o sobrolho, e tornando a olhar para Deron. – Cebolas, presunto e uns cogumelos? – repetiu ele. – Mas talvez pudéssemos juntar umas tiras de toucinho, nosso Sargento? O toucinho vai tão bem com o borrego! […]
[1]
Sabe-se o destino de Soult na sequência das manobras militares que levaram à sua derrota e consequente saída de Portugal . Quanto a Sharpe prosseguirá as suas aventuras…


* Professora, Mestre e Investigadora

[1] Bernard Cornwell, Sharpe e a Campanha de Wellington. Norte de Portugal, Maio, 1809, Planeta Editora, 2004, p.205.

07/01/09

INTERCÂMBIO




O ICEA - Instituto de Cultura Europeia e Atlântica, com sede na Ericeira, dirigiu-se à Associação de Defesa do Património de Torres Vedras (ADDPCTV) a solicitar autorização para publicar no seu Boletim "NOTICEAS" os artigos sobre o Bicentenário das Invasões Francesas.

Claro que anuimos de bom grado e sentimo-nos honrados com esta iniciativa.

Aqui fica a imagem da primeira página do Boletim mais recente.

Para saber mais sobre esta Associação cultural:








01/01/09

Texto nº 23 ( Jornal "BADALADAS", 2 / 1 / 2009 )



MARROCOS E A 1ª INVASÃO FRANCESA



José NR Ermitão



Com o abandono, em 1769, da última cidade marroquina ocupada pelos portugueses – Mazagão – criaram-se as condições para o estabelecimento de boas relações políticas e comerciais com o reino de Marrocos. Em 1774 foi assinado um tratado de paz entre os dois reinos e desde esse momento até 1807 o bom relacionamento e amizade entre os dois países não deixou de se aprofundar. Inclusivamente, em 1780, parte do tesouro do sultão marroquino esteve à guarda da casa da moeda portuguesa.

Quando a corte do sultão tomou conhecimento da 1ª invasão francesa e da passagem da família real para o Brasil, o primeiro ministro marroquino, Mohamed Salavis, escreveu ao cônsul português, Jorge Colaço, uma carta em que exprime os sentimentos que os factos lhe causaram. Transcrevo-a parcialmente:



(...) Recebi a vossa carta e, inclusa nela, a que o Vosso Príncipe... dirigiu ao Imperador, meu Senhor. (...) consta que o Vosso Príncipe se retirou para os seus estados do Brasil... o que nos tem causado um vivo desgosto e maior sentimento por se ver obri-gado a deixar o lugar da sua... residência; mas por outra parte estimamos a real resolu-ção que tomou, pois vai ser soberano independente nos seus vastos estados, o que é melhor do que ficar e ser governado por outrem, muito mais por aqueles que não têm religião nem boa-fé. Pelo que respeita à carta... sobre a exportação de trigo e gado, devo dizer-vos que como a cidade de Lisboa e o reino de Portugal se acham ocupados por aquele inimigo, ficou infrutífera até... ficar o governo restituído aos Portugueses que... governem em nome... do Vosso Príncipe. Neste caso tudo o que pedireis vos será conce-dido com maior abundância do que tem sido concedido até agora... 11 de Dezembro de 1807.”



Também o Sultão, Muley Slimane, escreveu ao Príncipe Regente, em meados de Janeiro de 1808, a carta de pesar que se transcreve parcialmente:



(...) Sabei que Nós encarecidamente perguntamos pela Vossa Alta Pessoa e pelo estado e mais disposições em que Vos achais. Tanto que nos chegou a notícia da vossa saída... para os vossos estados do Brasil, ficámos pesarosos e em grande cuidado...; porém, quando soubemos os motivos que vos obrigaram a agir daquela maneira, nos ale-gramos muito pela vossa ida, conservando deste modo a vossa alta dignidade e poder...
Já ordenámos ao vosso embaixador Jorge Colaço que escrevesse aos Governadores que deixastes no vosso reino... que... nós lhe assistiremos em tudo aquilo que preci-sarem dos nossos estados... enquanto neles permanecer a vossa autoridade...

Após ter tomado conhecimento da restauração do governo legítimo, o Sultão escreveu ao cônsul, a 26 de Dezembro de 1808, uma carta manifestando alegria pela «restauração do vosso país, voltando o domínio deste para o vosso legítimo Soberano» e autorizando a carga de 20 mil fangas de trigo «sem direitos, como um auxílio gratuito ao vosso país... e de 2000 bois pagando 5 duros por cabeça»; e a 28 de Dezembro, escreveu aos Governadores portugueses uma carta em que afirma «damos as devidas graças e louvores ao Deus Excelso que se dignou livrar o vosso país das garras de um pérfido inimigo para o restituir ao seu legítimo Príncipe» e repete a oferta e venda referidas na carta ao cônsul «como sinal da nossa gratidão... e favoráveis disposições para convosco».

Em suma, a posição da corte de Marrocos não se ficou só por declarações abstractas de solidariedade e amizade política. Para além da oferta de trigo e da venda de bois em condições excepcionais, chegou inclusivamente a prometer à Junta Governativa do Algarve (formada após a expulsão dos franceses daquela província) um empréstimo de 200 000 cruzados para acudir às despesas da guerra – promessa que não foi concretizada porque os franceses foram entretanto expulsos e o empréstimo já não foi necessário.
Que fique pois devidamente registado o comportamento exemplarmente solidário, em palavras e actos, do reino de Marrocos para com o nosso país no período particular-mente difícil que então estava a atravessar.

(Fonte: José Acúrsio das Neves, História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino; Porto, 2008.)